sexta-feira, outubro 10, 2003

DIÁRIO - XII – MIGUEL TORGA (V)

“Coimbra, 12 de Maio de 1974 – Um Domingo triste a ler papéis velhos, a ver se arranjava coragem para os rasgar. A ganga que um poeta deixa pelo caminho! Por cada expressão feliz, quanta ingenuidade, quanta burrice, quanta gaguez! A obra publicada também tem disso tudo, mas é beneficiada pela luz das montras. Adquire não sei que estatuto só pelo facto de se mostrar.



Coimbra, 19 de Julho de 1974 – Tem sido de caixão à cova. Pobre país! E o que estará ainda para vir! Mas não posso, nem quero, perder o pé na pátria. Terei de enfrentar o absurdo desta hora infeliz mesmo com ganas de voltar costas a tanto e tanto desconcerto. O pacto que assinei não foi com o azar das circunstâncias. Foi com a terra portuguesa e a língua portuguesa. E continuo a sentir a terra firme debaixo dos pés, e a poesia continua a cantar dentro de mim. O meu espaço de liberdade é o mapa de Portugal subentendido na folha de papel onde escrevo.



Coimbra, 27 de Julho de 1974 – Vamos finalmente dar independência aos povos colonizados. Uma independência que sem dúvida lhes irá custar cara, mas não há nenhuma que seja barata. Depois desse acto necessário e imperioso, Portugal ficará reduzido à tal nesga de terra debruada de mar. É a História que o exige, e oxalá que o destino também. Oxalá que ele, depois de tantos séculos de dispersão e perdição, nos queira reduzidos ao núcleo matricial para que, assim recuperados, possamos iniciar nova aventura. Nómadas no mundo, teremos de ser agora sedentários conviventes nesta Europa onde sempre coubemos mal e nunca nos soubemos realizar. Partir era a nossa carta de alforria. Hoje os caminhos não serão já os da demanda de espaços abertos a uma afirmação tolhida no berço, mas os de um achamento interior protelado séculos a fio.”


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