terça-feira, julho 29, 2003

"ACONTECE-NOS"

Especialmente para o dia de hoje, queria "pedir emprestado" um belo texto do Flor de obsessão ("editado" no passado dia 29 de Junho), no qual me revi (quase) por completo (o meu agradecimento por nos ter proporcionado estes momentos de pura beleza):



"Acontece-nos uma vez. Acontece-nos sempre.

Chegámos num melancólico inverno do princípio do ano. O meu pai não veio connosco. Eu, a minha mãe e o meu irmão, estávamos sós num sítio que não conhecíamos, à espera que o meu pai se juntasse. Entre nós, os pinheiros intermináveis e curvos, a folhagem agreste, as silvas, as nuvens baixas, tudo isto fazia parte de uma ideia maior, a de que o tempo passava ali menos depressa, ideia que se repetiria por muitos anos desde então. Ficámos num apartamento provisório, exíguo, mal acabado. Tínhamos o calor da lareira, vazio e falível, mas não tínhamos mais nada. Aguardávamos o meu pai para nos mudarmos para uma casa maior. E os dias eram longos, frios, tediosos. A minha mãe passava horas junto à janela a olhar para a chuva. Por vezes, acontecia ela balbuciar alguma coisa que não percebíamos bem mas que tinha a ver com o desgosto que ela sentia por estar ali, com a sua solidão, o tempo a escoar-se lentamente. Percebi que o desgosto de uma mulher aflige muito mais do que o desgosto de um homem. Tantos anos depois, creio que esse dia foi premonitório, uma ocasião em que podíamos ver o futuro, se tivéssemos consciência disso. A lareira ardia, esperando pelo meu pai, que sempre foi o primeiro a aproximar-se dela, até nos dias mais amenos em que não fazia sentido ter o lume aceso. Mas na altura ele não estava e era o nosso primeiro dia naquele local. Eu, a minha mãe, o meu irmão, os três olhámos uns para os outros, num silêncio carregado, quase espectral, e nunca estivemos tão perto como nessa noite escura. Primeiro, chorou a minha mãe, depois chorei eu, depois o meu irmão. Uma epidemia súbita, uma transmissão impossível, a derrocada de um castelo de cartas. Uma mão fúnebre cobriu-nos aos três em conjunto, apanhando-nos durante minutos sem nos largar. Ninguém se mexeu. Lá fora, a névoa caía, espessa, sobre os pinheiros. Os cães latiam. Vinha chuva."


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