domingo, outubro 12, 2003

DIÁRIO - XII – MIGUEL TORGA (VII)

“S. Martinho de Anta, 24 de Dezembro de 1976 – São tantas da noite. Sentado à lareira, com o rádio aberto a transmitir os gorjeios de uma senhora que me parecem um comentário escarninho ao que escrevo, medito na minha vida, cada vez mais perto do fim. O que fiz e não fiz, o peso que tiveram em tudo quanto realizei literariamente, e até humanamente, esta paisagem e as sombras que a habitam, a distância a que fiquei da meta que me propus ou que as circunstâncias me iam propondo, a luta que travei para ser convivente até ao limite da dignidade, e como foram catastróficos certos desfechos afectivos. Poucos quiseram compreender que um poeta nem pode deixar de ser rebelde, nem ceder à tentação de se ver transformado em bandeira. Que o seu destino não é sentir-se identificado. Mas que, embora isolado do semelhante, não está obrigatoriamente separado dele. E que, faça o que fizer, fica sempre fora da expectativa dos outros e da sua própria. Tão desencontrado consigo mesmo, que só se encontra para se perder ainda mais.



Bruxelas, 6 de Junho de 1977 – Palavras que vim hoje aqui dizer.

"Minhas Senhoras e Meus Senhores:

A poesia está de festa. Não porque a vemos neste momento celebrada na pessoa de um poeta qualquer, mas porque uma das tonalidades da sua voz foi finalmente ouvida e reconhecida num conclave onde até hoje nenhum Espírito Santo a fizera descer. É o português uma velhíssima e nobre língua latina espalhada pelos cinco continentes. Nela cantaram e cantam grandes vultos inspirados, de Camões a Fernando Pessoa, de Bernardim Ribeiro a Teixeira de Pascoaes. Capaz de dar guarida às mais desabusadas fúrias épicas e às mais discretas confidências líricas, dúctil e colorida em todos os paralelos geográficos que nas suas andanças visitou, poucas a igualam nos fecundos dons proteicos, na sua barroca plasticidade."

…”


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