quarta-feira, outubro 08, 2003

DIÁRIO - XII – MIGUEL TORGA (III)

“Nova Lisboa, 30 de Maio de 1973 – O pé escreve as unidades; o automóvel adita as parcelas; o avião mostra a soma. Das três maneiras me tenho servido para levar desta terra uma imagem condigna. Da terra, repito. A dos homens não requereu tanto esforço. Igual por toda a parte, ao primeiro relance fica entendida. Dois lados de uma medalha: no verso, a fisionomia ávida e leviana do branco, que não conseguiu traduzir cinco séculos de presença numa missão histórica; no reverso, a do negro, humilhado na sua inocência tribal ou degradado na sua destribalização. Os muceques de Luanda são os bairros de lata de Lisboa. Em ambos se processa a mesma dissolução humana.



Luanda, 31 de Maio de 1973 – É pena. Falhámos por um triz. Bastava que tudo quanto aqui fizemos fosse por outra intenção. Que cada um dos que vieram mar fora trouxesse a convicção de que ser angolano, moçambicano, guinéu ou timorense eram maneiras heterónimas de ser português. Mas nenhuma escola da pátria lho ensinou a sério, nem algumas exemplaridades paradigmáticas foram suficientes para lho incutir.



A voar para Moçambique, 1 de Junho de 1973 – Tenho de me render à evidência: o homem que voa dimensiona o mundo de outra maneira. Que perspectiva poderia eu levar da imensidão africana, a calcorreá-la a passo de caranguejo? A vida inteira não chegaria para traçar nela meia dúzia de coordenadas. Assim, de um só relance, abranjo a infinita grandeza deste corpo febril e sonolento, ao mesmo tempo despido e inviolado. Corpo onde altas serras e cordilheiras infindáveis são rugas insignificantes, e rios intermináveis e caudalosos parecem veias exangues.”


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